• Keine Ergebnisse gefunden

BRASIL : A ESTRATÉGIA SAÚDE FAMÍLIA

D

esde o início do século XXI, a Estratégia Saúde Família (ESF) tem sido um componente essencial da política brasileira de atenção básica e dos esforços de universalização da cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS). À semelhança do que acontece noutros países, baseia-se no trabalho de equipas multi-profissionais ligadas a um determinado território e prioritariamente dedicadas à prevenção e promoção da saúde. Ao mesmo tempo, a ESF tem características particulares que resultam dos desafios específicos que o Brasil enfrenta. Neste país, o acesso aos cuidados de saúde constitui ainda um grande problema, inclusive nos centros urbanos; as desigualdades de renda e o surgimento de uma nova classe média resultaram no aumento dos planos privados, num contexto de sub-financiamento crónico do sistema público de saúde; e o crescimento económico dos últimos anos tem levado a uma combinação de problemas de saúde característicos de nações em desenvolvimento (doenças tropicais e problemas de saneamento, por exemplo) com problemas de sociedades afluentes (obesidade e doenças cardiovasculares).

A ESF é o resultado de um longo processo com as suas origens na década de 1970, altura em que iniciativas de nível local começaram a promover a colaboração entre profissionais de saúde e agentes comunitários voluntários. A colocação de agentes comunitários na primeira linha da atenção básica

demonstrou o reconhecimento das insuficiências do sistema público de saúde brasileiro—nomeadamente a escassez de profissionais de saúde qualificados e a incapacidade de chegar às populações das regiões e bairros periféricos e marginalizados. O termo “saúde família” foi introduzido pela primeira vez em documentos oficiais em 1994. Em 1998, programas de saúde família foram reconhecidos como princípio estruturante do SUS. No início do século XXI, a saúde família foi reorganizada enquanto estratégia.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, em outubro de 2014 existiam quase 39 mil equipas de saúde família no terreno – cada uma incluindo pelo menos um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e um número variável de agentes comunitários. A cobertura populacional estimada era de 120 milhões.

A ESF deve ser vista no contexto geral do SUS, e em particular no contexto da promoção de um novo modelo assistencial. Em primeiro lugar, a ESF procura realizar os objetivos do SUS através de um aumento da cobertura da assistência. Porém, os seus elementos mais radicais estão relacionados com o tipo de cobertura pretendido. Três ideias são particularmente importantes neste contexto.

A primeira é o objetivo de humanizar os cuidados de saúde, indo além de um modelo centrado no hospital e evitando, tanto quanto possível, intervenções de âmbito

farmacológico e tecnológico consideradas intrusivas. A ESF procura humanizar a assistência pela sua proximidade às populações, através da promoção de determinados hábitos e práticas (como o parto natural e o aleitamento materno), e pelo estabelecimento de diálogo com práticas médicas alternativas (incluindo medicina popular e não ocidental).

Em segundo lugar, a ESF promove uma visão integral da assistência. O termo “saúde família” já denota um distanciamento dos modelos assistenciais centrados na saúde do indivíduo. Para além disto, as equipas da ESF têm como missão promover uma abordagem holística à saúde incluindo prevenção de doenças, promoção de estilos de vida saudáveis, educação para a saúde, reabilitação pós-doença, e mesmo intervenções a nível do ambiente social (como a promoção de atividades sociais para idosos ou iniciativas contra a violência doméstica). Estas atividades são suplementadas por uma atenção especial a grupos vulneráveis e apoiadas na permanente recolha de dados e monitorização dos indicadores de saúde das populações.

Finalmente, a ESF insere-se noutro dos objetivos prioritários do SUS: o aumento da participação pública na elaboração das políticas de saúde e na assistência. A participação pública na elaboração e implementação de políticas é um requisito constitucional no Brasil. No caso da saúde, este requisito reflete-se no envolvimento de grupos negligenciados, de movimentos comunitários (incluindo organizações de pacientes e cuidadores) e na atenção dada aos saberes tradicionais e não-profissionais.

Estas três características demonstram até que ponto a ESF, enquanto parte integrante do SUS, tem procurado

resistir ao modelo biomédico ocidental caracterizado por intervenções curativas, farmacológicas e centradas em hospitais.

A ESF teve importantes sucessos, incluindo passos decisivos na cobertura de vacinação, na saúde materna a na redução da mortalidade infantil. No entanto, numerosos desafios persistem. Um dos problemas mais sérios resulta paradoxalmente do princípio descentralizador que subjaz ao SUS. A situação de dependência em que a ESF se encontra face às autoridades municipais significa uma vulnerabilidade às flutuações políticas. Isto resulta em desequilíbrios—por exemplo, unidades tecnologicamente avançadas ao lado de outras nas quais a eletricidade é pouco fiável—e também em dificuldades no que diz respeito a garantir a sustentabilidade a médio e longo prazo das intervenções, que muitas vezes dependem da iniciativa pessoal dos profissionais de saúde e agentes comunitários. Em muitos casos, o trabalho e a boa vontade destes profissionais são afetados pela situação profissional precária na qual se encontram.

Um outro desafio está relacionado com as dificuldades de monitorização dos indicadores de saúde em regiões onde a população é altamente móvel e suscetível a flutuações sazonais significativas. O melhoramento destes indicadores é também um desafio: como qualquer outra estratégia de atenção básica, os sucessos da ESF nem sempre são mensuráveis ou quantificáveis, e parte da capacidade de atingir objetivos depende da existência de relações de confiança com a população. Estas metas de longo prazo encontram-se vulneráveis face à crescente importância, em muitas sociedades, de critérios de eficiência na assistência. O

Brasil não está imune a estas tendências: o crescimento dos planos de saúde privados e as pressões sobre o financiamento do SUS demonstram a coexistência de visões divergentes face à assistência em saúde.

Finalmente, a ESF não tem conseguido escapar por completo à influência do modelo biomédico ocidental.

Essa influência é visível no choque entre os objetivos da ESF e as expectativas das populações. Muitas pessoas, em especial aquelas de grupos tradicionalmente negligenciados, demonstram ainda dificuldades em entender a razão de ser de unidades de saúde que não tem como objetivo prioritário a prestação de cuidados curativos e o fornecimento de medicamentos. Por conseguinte, muitas unidades da ESF são na verdade híbridas—locais onde a atenção básica é prestada junto com as funções mais tradicionais dos hospitais e das unidades de urgência.

Dr João Nunes Universidade de York Reino Unido

F O U R T E E N

Outline

ÄHNLICHE DOKUMENTE