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No capítulo anterior, ao tentar rebater a crítica de Beatriz Sarlo ao conceito de pós-memória e justificar a validade de seu uso, parti do ponto que a distinção começaria no estatuto de verdade que envolve o processo mneumônico proposto por Hirsch, que seria distinto daquele dos processos de memória tradicionais. Como já expus nos capítulos anteriores, ainda que fragmentários e compostos através de um mosaico de vivências corporais diretas e discursos alheios, os discursos testemunhais que se originam das experiências diretas de trauma não têm o seu caráter verídico em questão. Aquele que ouve ou lê um testemunho, acredita no que está sendo dito e este caráter de verdade é parte importante do processo de composição discursiva. Na pós-memória, no entanto, não temos uma veracidade inerente ao discurso, mas, ao contrário, encontra-se explícita uma suspensão da verdade, que passa a estar sempre na corda bamba, em negociação exposta dentro do próprio texto. Desde o princípio, nos é avisado que não devemos acreditar totalmente naquilo que lemos, no entanto, informações históricas cruzadas e dados biográficos verificáveis nos levam a crer que trata-se, sim, de um texto referencial, inserindo essas obras em uma zona cinza, de fronteira entre a autobiografia e a ficção, ou dentro da constelação do que se convencionou chamar de autoficções.

Não é um fenômeno novo o destaque cada vez maior recebido por romances que se declaram autoficcionais. A terminologia, um neologismo que busca juntar os dois gêneros literários que seriam até então opostos, data de 1977 e foi criada pelo professor e escritor francês Serge Doubrovsky para definir o seu romance Fils, palavra francesa que pode ser traduzida tanto como fio, ou encadeamento, quanto como filho. Narrado através de uma voz em primeira pessoa, o romance acompanha o dia a dia do seu narrador, SD ou Serge, em suas sessões de terapia, jornadas de

19. Esse capítulo nasce a partir de pesquisa realizada dentro do meu mestrado, realizado na Universidade Federal de Pernambuco entre os anos de 2010 e 2011. O texto aqui apresentado é uma adaptação e resumo do segundo capítulo do resultado final, a dissertação Escrita como

trabalho, peregrinações pela cidade e pequenas viagens, mas também o acompanha em sua vida psicológica, memórias distantes e sonhos. Em referência ao título, podemos dizer que a história é tecida através de fios que misturam peripécias fictícias, memórias reais, lembranças recentes e distantes, sem nenhuma distinção formal entre aquilo que foi inventado e o que realmente aconteceu. De fato, o romance nasce como uma provocação ao clássico de Philippe Lejeune lançado em 1971, O pacto autobiográfico, obra que se propõe a definir categoricamente a autobiografia como gênero literário, impondo seus limites e a enquadrando em uma rígida forma. De caráter extremamente pragmático, o texto de Lejeune começa estabelecendo dois critérios fundamentais para a existência de um texto autobiográfico: o estabelecimento de um pacto de leitura e a identidade compartilhada entre autor, personagem e narrador. Assim, qualquer texto que desrespeite um desses critérios não pode ser lido como autobiográfico.

Fils nasce, então, para provar o erro da teoria desenvolvida por Lejeune, mas acaba por dar origem ao que Doubrovsky denomina autoficção, em um neologismo bastante literal. Em seu projeto de subverter o modelo tradicional de autobiografia e transgredir os seus limites, Doubrovsky acaba por inserir o discurso do eu em um novo espaço, um local transitório que torna impossível a existência de qualquer contrato firmado entre autor e leitor dentro do modelo proposto por Lejeune. Temos, então, a criação de um novo gênero literário que pode ser definido como uma novela verídica narrada por um protagonista que é e ao mesmo tempo não é o autor. Ou, nas palavras do próprio Doubrovsky:

Ficção, de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se se quer, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, deixando fora a sabedoria e a sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros, filhos/fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escritura de antes ou depois da literatura, concreta, como se diz musicalidade. Ou ainda, autofricção, pacientemente onanista, que espera fazer agora partilhar seu prazer. (Doubrovsky, apud Rosa, 2010: s/p)

Se é o esforço do autor pela sinceridade o elemento que torna possível o pacto autobiográfico, a leitura autoficcional traz dentro de si sempre a consciência da ambiguidade de cada referência utilizada, a sutileza da confusão proposital entre vida e obra. O leitor, assim, é desestabilizado por saber que não pode confiar completamente no que lê, ao mesmo tempo em que tem consciência que tampouco

deve entender tudo por invenção, enfim, por não saber ao certo que tipo de leitura deve exercer. À medida que entrelaça os gêneros referencial e ficcional, dessa forma, Fils aponta não somente a contaminação da memória pelo imaginário, fenômeno observável dentro de qualquer discurso que se pretenda autobiográfico, mas a possibilidade de recriar-se em outro ou em outros, de possuir uma personalidade que se desdobra em vários personagens, em vários papéis. O eu aqui só existe através de um eterno deslizamento, de tentativas sucessivas de produzir-se textualmente através de uma sinceridade forjada dentro e fora do texto.

O conceito criado por Doubrovsky já surgiu envolto em diversas polêmicas, acerca não somente da originalidade do processo proposto pelo escritor francês, mas também de seus embasamentos teóricos. No entanto, a despeito das críticas, o termo ganhou grande destaque dentro da crítica literária, saindo da França e transformando-se em um fenômeno global, que extrapola inclusive os limites da literatura, tendo adentrado o mundo das artes plásticas e do cinema20. No Brasil, por exemplo, a palavra autoficção foi incorporada à versão mais recente do dicionário Houaiss. Em uma tentativa de lançar uma luz em cima das confusões e polêmicas instauradas ao redor do tema, o crítico francês Jacques Lecarme elabora uma definição bastante clara e sucinta para o termo, colocando que “l'autofiction est un dispositif très simple:

soit un récit dont auteur, narrateur et protagoniste partagent la même identité nominale et dont l'intitulé générique indique qu'il s'agit d'un roman” (Lecarme, apud Alberca, 2006: 11). Entretanto, logo após elaborar a sua definição, o crítico aponta que a proposta apresentada por Doubrovsky não representa nenhuma novidade.

Como justificativa, Lecarme nos mostra que, ainda que sem a alcunha do termo autoficção, o recurso utilizado em Fils já havia sido explorado por muitos outros, sendo possível encontrar exemplos dessa imersão do autor dentro do mundo de seus personagens em toda a história da literatura moderna ocidental (desde A Divina Comédia, de Dante, até os recorrentes exemplos que podem ser encontrados nos textos de Jorge Luis Borges) e que ganha especial destaque a partir da crítica do

20. Discussões em torno do conceito da autoficção também foram o foco de vários congressos internacionais, como o Coloquio Internacional Escrituras del yo, realizado desde 2012 anualmente em Rosário, Argentina , o simpósio La autoficción en América Latina, realizado em 2013, em Buenos Aires, além de ter sido o tema de várias revistas acadêmicas, como por exemplo o número um número especial da Associação de Literatura Brasileira Contemporânea

sujeito, nos anos setenta, sendo o exemplo mais contundente Roland Barthes por Roland Barthes, texto que mistura elementos pertencentes aos universos das autobiografias e das confissões, sem pertencer a nenhum deles21. A partir desse apontamento da possível não-originalidade do proposto por Doubrovsky, é instaurada a questão: será que somente o compartilhamento da identidade entre o narrador-personagem e o autor real é motivo suficiente para assegurar que um texto está transgredindo os limites do romance e mesmo as fronteiras entre realidade e ficção?

Apesar de compartir com Lecarme a ideia de que, de fato, a autoficção não pode ser vista como um novo gênero e também que o autor deve assumir o risco de compartir o seu nome com o seu narrador-personagem, Vincent Colonna (2004) coloca que um aspecto fundamental foi ignorado por Lecarme e que justamente aí estaria a novidade que propôs Doubrovsky. Para Colonna, a autoficção é uma obra literária onde o autor, muito além de dar o seu verdadeiro nome a um personagem, se inventa uma personalidade e uma existência que vai além do texto. Ao propor se reinventar através de um discurso que denomina autoficcional, o autor está afirmando que não acredita mais numa verdade literal, na possibilidade de existência de uma referência indubitável, se percebe como (re)construção arbitrária e literária feita através de fragmentos esparsos (de memórias, fabulações, desejos, pequenas invenções). Dessa maneira, ao ficcionalizar a identidade e a experiência vivida, o autor se adere de uma maneira descomprometida a esse personagem fictício que responde a seu próprio nome. É o apagamento do princípio de distanciamento ou de não-identidade que rege as obras ficcionais e pelo qual o autor se apaga, se esconde ou se faz outro dentro do texto e é justamente a abertura dessa possibilidade que torna a autoficção uma proposta não somente original, mas revolucionária.

Pensar a autoficção implica dizer que dentro da análise dos fatos narrados não importa mais a verdade biográfica, mas a reflexão que ela traz sobre o sujeito da escrita. Então, mesmo que o referente continue sendo o autor, este não importa mais como pessoa biográfica, como agente de uma história de vida linear. Esse autor

21. O lançamento do livro de Barthes foi envolto em grande polêmica acerca da natureza do texto e, devido à dificuldade de o enquadrar em um gênero literário corrente, este foi definido através do que não era - nem uma autobiografia, nem um livro de confissões, nem um livro de ensaios. A primeira frase do livro, manuscrita, anuncia como deve ser a leitura: "Tudo isso deve

aparece como personagem construído discursivamente, que se coloca nessa construção do discurso, ao mesmo tempo em que se indaga sobre a sua subjetividade e se posiciona de forma crítica frente às suas possibilidades de representação e de construção de uma individualidade. Tratamos aqui, portanto, de um desejo de falar de si consciente da impossibilidade de fazê-lo. Paradoxo que marca também a escrita do trauma. Se o nascimento de uma sintaxe traumatizada nasce da necessidade de criação de uma linguagem que possa aproximar-se de fatos que não cabem na fala cotidiana, a criação de uma persona autoficcional surge para narrar uma vida que foge dos modos tradicionais. Neste sentido, aqui também aparecem os elementos formais da escrita do trauma, como os espaços em branco e a fragmentação, que aqui assumem o lugar da continuidade discursiva característica da autobiografia tradicional, regida pela linearidade temporal e completude do relato atestada através da sinceridade de quem fala.

Pode-se dizer que a autoficção é indissociável da escrita do trauma, ultrapassando o campo do trauma histórico ou coletivo, área de abrangência da pós-memória. Em termos gerais, temos romances de luto, onde o narrador é sempre aquele que sofre, seja por uma perda concreta, seja por uma perda metafórica, para a qual não se pode apontar diretamente. Como aponta Luciana Hidalgo (2013), muito além das discussões acerca dos limites formais e enquadramentos teóricos, o que instiga realmente na zona fronteiriça dos textos autoficcionais é o questionamento da necessidade que surge de transcender os limites do testemunho. Em outras palavras, o que tornaria a ficção tão necessária seria justamente a presença do luto e do trauma,.

A conclusão que chega é que a autoficção surge como uma negociação da dor, trazendo à tona um segundo eu que seria obrigado a coexistir com o eu primordial, assim, “a autoficção - com sua inspiração poética, etimológica, ontológica - ajudaria a recompô-lo, a medir, conter, exprimir um excesso de si, conduzindo o eu na difícil travessia” (Hidalgo, 2013: s/ p). Régine Robin em La autoficción – El sujeto siempre em falta (2005) aproxima o processo de construção do texto autoficcional à psicanálise, ressaltando que o próprio Dubrobsky pensava essa relação:

La autoficción es la ficción que en tanto escritor decidi darme a mí mismo, al incorporar a ella, en el sentido pleno del término, la experiencia del análisis, no sólo en la temática, sino en producción del texto. (Dubrovsky, apud Robin, 2005: 46)

A utilização do discurso autoficcional como artifício para dentro do relato do trauma coloca em evidência, em primeiro lugar, o caráter lacunar da memória traumática e tem como consequência um questionamento do local da verdade na formação da autoimagem, apontando para as possíveis falhas na construção da própria identidade.

Ao aproximá-lo ao discurso construído no divã psicanalítico, Robin argumenta que também na construção dos textos autoficcionais o paciente tenta reconhecer o que está oculto na narrativa que faz da própria vida, um processo onde se olha com distanciamento e estranhamento o que é dito. Para Robin, enquanto a autobiografia constrói uma identidade estável, o trabalho de análise a dissolve, assim como acontece nos textos autoficcionais. Da mesma maneira, a autoficção pode ser vista como um trabalho de luto que desconstrói a ilusão biográfica e deixa para trás um lugar vazio, ocupado pelas operações ficcionais que funcionam como uma investigação cujo objeto é a própria autoimagem.